sábado, 30 de outubro de 2010

Sobre o centenário da República no Nordeste 1910-2010

Conferência proferida na Escola Secundária do Nordeste
Monarquia é, como se sabe, o governo dum só, por graça de Deus, até à Revolução Francesa e daí para diante por mandado do povo que diz quem manda. Na história, os Monarcas aguentam-se ou não conforme as circunstâncias. O nosso que vinha pelo menos desde 1143, acaba assassinado em 1908 – chamou-se a esse crime: o regicídio. Dois anos depois vêm os republicanos e a última Família Real reinante (com o rei impreparado de 19 anos de idade) foge para sempre.
Durante a monarquia, os açorianos foram muitas vezes chamados a altos cargos. Manuel Pamplona Corte Real matemático da Terceira, general do exército, conde Subserra é primeiro ministro de D. João VI (Ministro assistente ao despacho) à volta de 1821.
António José de Ávila, de filho de modesto sapateiro do Faial, forma-se em filosofia em Coimbra e chega a duque de Ávila e Bolama e primeiro ministro de D. Luís.
Ernesto Hintze Ribeiro (1849-1907), filho dum comerciante de Ponta Delgada, doutora-se em direito e chega a primeiro ministro de D. Carlos em 1893.
Começa a sua vida política parlamentar como deputado pelo Nordeste, em 1878, devido à sua amizade com António Alves de Oliveira 1847-1936, a quem se mostrou sempre grato, dotando o concelho com obras muito importantes (Câmara, Viaduto, Farol, estrada da Tronqueira, etc.).
A decadência da monarquia: o regime monárquico foi-se degradando, a partir de determinada altura. Ditados populares traduzem essa degradação que era manifesta na primeira década do século XX: “Pai rico, filho barão, neto ladrão”. Ou este outro: “Foge cão que te faço Barão; mas para onde se me fazem visconde?”.
Não obstante, os titulares foram sempre escolhidos entre pessoas de valimento quer cultural (Visconde Camilo de Castelo Branco), económico, como o Barão da Fonte Bela, ou político como o Visconde da Palmeira: Manuel Jacinto Lopes nascido nesta Vila do Nordeste, na rua com o seu nome em casa que ofereceu ao Município. Muito jovem parte para a Vila Franca, trabalha no comércio, estabelece-se por sua contra e casa com uma viúva muito rica da alta nobreza micaelense, Maria Carlota Moreira da Câmara, Viúva de Arsénio Botelho de Gusmão de quem não teria filhos. Desenvolve a fortuna, e, no ano em que o amigo de seu amigo Alves de Oliveira (Ernesto Hintze Ribeiro) chega a primeiro ministro, fá-lo Visconde da Palmeira, que era já grande benemérito e lúcido político regenerador. Estava ele como administrador do Concelho de Vila Franca do Campo quando chegou a República pelo telégrafo. Logo dá posse ao académico Mariano Arruda e é também aclamado pelo povo. Aderiu a 12 de Outubro à República tornando-se um dos inumeráveis “adesivos” nome porque ficaram conhecidos os monárquicos que rapidamente aderiram à República.
Todavia, não vai ser nordestense o primeiro cidadão nomeado para governar a décima ilha. Com efeito, João Vaz Pacheco de Castro, é o primeiro líder republicano no Nordeste para onde fora há pouco nomeado notário. Francisco Luís Tavares, o novo governador, talentoso advogado do partido Regionalista Micaelense, do grupo de António José de Almeida, encarrega-o de organizar o novo regime neste concelho. Político ousado – caudilho temido, Castro vai chamar para junto de si Horácio Moniz de Medeiros, Francisco de Medeiros Botelho, António Machado Macedo e Jacinto de Medeiros.
Enquanto Francisco Luís Tavares, com Luís Bernardo e Evaristo Menezes se encarregam, em Ponta Delgada, de expulsar as irmãs de S. José de Clunny que dirigiam os colégios femininos mais importantes da ilha e a Sinagoga da cidade faz uma bênção especial ao Presidente da República e ao governo, presidido por Teófilo de Braga, o micaelense que chegara a professor da Universidade e que se torna assim no quarto açoriano a ocupar esse elevado cargo.
A Câmara Municipal do Nordeste resolve então mudar o nome das ruas, táctica usada em todo o país. A Rua da Vera Cruz passa a 5 de Outubro; a do Prior Pereira passa a Cândido dos Reis, o almirante suicida; a do Capitão-Mor toma o nome de Miguel Bombarda que um louco, seu doente, assassinara naquela altura; a Rua do Capitão Machado muda para Machado dos Santos em homenagem ao herói republicano da Rotunda. A multi secular Praça do Município muda para da República e o Largo da Igreja passa a ter o nome oficial de Largo Teófilo de Braga.
Estão por estudar as consequências políticas da implantação da República no Nordeste mas não foi pacífica, obrigando à intervenção duma força militar que se terá demorado mais tempo que o esperado. Comandou essa força o capitão Alfredo da Câmara que foi alvo de chacota dos jornais humorísticos, como O Direito do Povo. Numa secção que intitulava Os impossíveis, este jornal de Ponta Delgada, considerava impossível saber-se como tem passado pelo Nordeste o capitão Choradinho ou impossível não se dar bem nesta Vila pois já tinha mandado fazer um pátio para as galinhas oferecidas. Como era impossível ser preciso continuar por estes sítios o terrível exército, a não ser por uma questão de veraneio. Mas a questão não é essa. No Nordeste tinha sido muito contestado o Registo Civil obrigatório, que até aí era apenas feito gratuitamente na Igreja, e que passa a ser pago.
Há alusões na imprensa da cidade a facciosismos da Câmara Municipal do Nordeste na publicação dos seus anúncios na imprensa local, no que os outros jornais chamam “o caso do Nordeste”.
Manuel Augusto de Amaral, o poeta de Água de Pau, que morava na Ladeira dos Pinheiros, em Ponta Delgada, publica então um poemeto intitulado Pátria Nova, que a Farmácia Duarte tem à venda nesta Vila.
Os nordestenses não ficam parados tentando lutar contra o seu pior inimigo: o isolamento. E a Junta Geral é obrigada a aprovar uma estrada de rodados para o Nordeste, sendo certo que o concurso do lanço Feteira Achada ficou sem empreiteiro concorrente.
Vejamos agora duas importantes figuras da República que nasceram neste concelho e aqui se criaram mas que se iriam transformar nas personalidades mais em destaque da política da 1.ª República nos Açores. Antiga família da Achada, os Francos, chegam ao século XIX, situados na classe média alta. São figuras proeminentes dessa família, o poeta e malogrado sacerdote, Manuel de Medeiros Franco que iria ter um destino misterioso e trágico, que Almeida Mello divulgou num dos seus saborosos livros, e o professor Júlio de Melo a quem certamente ficaram a dever as primeiras letras. A mãe de António e Horácio Franco destinou-os ao Seminário de Angra onde estiveram alguns anos. Todavia não era a sua vocação, tendo através das irmãs conseguido que a mãe aceitasse outro destino para os filhos. Vieram para o liceu de Ponta Delgada estudar e daqui seguiram para Coimbra onde se formaram os dois em direito. Pediram dinheiro emprestado ao Marquês Jácome Correia que pagaram religiosamente próprio e juro depois de formados. Ajudaram ainda no dote das irmãs. Foram ambos notários e advogados e políticos do Partido Republicado Português que ficou na história como partido democrático de Afonso Costa.
O mais velho deles António de Medeiros Franco, 1882-1959, forma-se em 1911; orador eloquente, poeta inspirado (Quando se acorda de um sonho/Feito de Luz e Esperança/É doce o hino risonho/dos beijos duma criança), grande escritor e músico notável, tendo chegado a reger o Órfeon Académico de Coimbra, em Paris.
Deputado (1915/17), Senador da República 1922-1925 (chega a ser convidado para Ministro, lugar que recusou), consegue ampliar os poderes das Juntas Gerais permitindo-lhes vender bens sem autorização prévia de Lisboa para aquisição de material hospitalar. É nomeado Governador Civil de Ponta Delgada em 1917 quando a revolução de Sidónio Pais o afasta.
A escola da Achada tem o seu nome.
Seu irmão mais novo, Horácio de Medeiros Franco, 1888-1952, é ajudado por ele e, segundo promessa feita no leito de morte de seu Pai, terá o mesmo percurso profissional e político. Foi Governador Civil de 1921-1923. Era maçon iniciado em 1914, com o nome secreto de Augusto Conte, da Loja Companheiros da Paz, de Ponta Delgada, onde teve a categoria de venerável no período mais difícil da existência daquela organização clandestina: 1926-1932. Salazar não lhe perdoou a ousadia e acabou castigando-o através dum processo cujos contornos ainda hoje estão por esclarecer.
Foram tão importantes no seu tempo, estes irmãos Francos que os adversários diziam que a Junta Geral que eles dominavam, valia pouco: - Só dois francos, que ao tempo era a moeda francesa.
Gostava, para acabar, de lhes ler agora um decreto forjado pelo jornal humorístico Direito do Povo, que mostra bem o clima da época, na altura em que se deu o contra ataque dos monárquicos e em que tudo parecia incerto, nas hostes republicanas:
D E C R E T O
Considerando, quão funesta foi a monarchia, demolida em 5 de outubro de 1910; e considerando que o novo regimen precisa de uma vez para sempre ficar ficar implantado em Portugal e nas ilhas adjacentes…
Considerando que, para tanto é preciso eliminar tudo o quanto recorde o antigo regímen
“O Direito do Povo, jornal de maior circulação em S. Miguel faz saber que de accordo com o Governo Provisório da Republica Portuguesa, decreta para valer como lei o seguinte:
Art.º 1 – É abolido para todo o sempre a realidade dos factos…
ART.º 2 – O adverbio realmente, passando-se provisoriamente a dizer: democraticamente.
ART.º 3 – Nas escolas fica banido o ensino da prova real…
ART.º 4 – Nos jogos de cartas não podem figurar os Reis, sendo em S. Miguel substituidos pelos democratas: Martins – az de paus, Pedro – de espadas, Amâncio – de ouros, - e Cláudio – de copas…
ART.º 5 – É abolido o real d’agua e todos os Corte Real…
ART.º 6 – Não são válidos desde o presente decreto os nomes Luiz dos Reis, Germano S. dos Reis, Anthero dos Reis e outros, podendo ser substituidos por nomes de revolucionarios.
ART.º 7 – Nas propagandas republicanas não se pode dar vidas ao Sr. Capitão Reis, podendo dizer-se Viva o Sr. Germano Republicano.
ART.º 8 – São abolidas as corôas e os 500 reis passando em S. Miguel a valer 500 Franciscos, Brunos etc…
ART.º 9 – Pelo preceituado no art.º anterior os padres passarão a abrir em vez da dita um R grande quer dizer republica (que diz só Custodi).
ART.º 10 – Pela mesma razão são abolidas as coroas funerárias.
ART.º 11 - Fica proibido d’hoje para o futuro fazer-se corte seja a quem for…
ART.º 12 - As bandas fanfarras tunas, deixarão de ter regentes…
ART.º 13 - Fica banida a epocha do Carnaval por ser o tempo da Reinação.
ART.º 14 – A agua das Lombadas passará a chamar-se em vez da Rainha das aguas a cidadã agua do Salazar.
ART.º 15 – É proscripto para todo o sempre as palavras Deus… santo… e reino dos ceus. Assumindo aquela presidência o Evaristo com a língua de fora.
ART.º 16 – Nos jornaes não se dirá: amanhã realisa… uma conferencia F… mas amanhã Francisca-se… Germanisa-se…Martinisa-se etc.
ART.º 17 –Fica revogada a legislação em contrario.
Que todas as auctoridades façam imprimir, publicar aos jornaes em circulares e fixar nos logares públicos.
Dado na Rua do Gaspar na presença da policia toda, aos 13 de maio de 1911. Pelo Governo Provisorio
O Jornal O Direito do Povo
E agora a sério, transcrevo um anúncio importante do Diário dos Açores de Outubro de 1910:
Aos bons republicanos: vinho de cheiro do melhor só na rua da Louça!”
Tenham um bom centenário.
Carlos Melo Bento - 4 de Outubro de 2010

terça-feira, 26 de outubro de 2010

Luís Filipe da Cota Moniz

Discurso proferido na festa de despedida do Dr. Luís Filipe da Cota Moniz por Carlos Melo Bento, Angra do Heroísmo, 17 de Abril de 2010.


Começo por agradecer à D. Margarida Andrade a honra do convite para esta bonita e bem organizada festa e o privilégio de poder falar-vos sobre uma pessoa a quem me ligam os indestrutíveis laços da amizade.

Amigos

Já lá vão tantos anos que nem sei quantos são os que passaram sobre o nosso primeiro encontro. Bem mais novos éramos certamente que nem cabelos brancos tínhamos. Tratava-se de erguer o primeiro Conselho Distrital dos Açores da Ordem dos Advogados Portugueses.

Os colegas de Ponta Delgada haviam-me encarregado de os representar na constituição dessa primeira equipa que iria ressuscitar o velho Conselho, extinto nos tempos super económicos do salazarismo. Timidamente, contactei o velho tribuno terceirense com quem há pouco me enrolara em acesas disputas políticas televisivas. Álvaro Monjardino, dez anos mais velho do que eu, mas com uma aparência pelo menos uma década mais jovem; indicou-me dois nomes para esta aventura forense não remunerada mas com altas exigências morais e deontológicas: António Fantasia e Luís Filipe da Cota Moniz.

Aceite o inusitado convite, começou uma colaboração que haveria de desaguar numa amizade sólida, até hoje. Lembro-me com emoção do primeiro cartão que me mandou e que guardo com o desvelo das coisas boas da vida. Lá vamos, dizia ele, servir então estes Açores, “cemitério das nossas ilusões”.

Ao princípio, a frase chocou-me porque os Açores para mim foram desde sempre uma divindade em altar incensado, templo de irmãos de história e geografia, aventura infinita de portugueses antigos para aqui mandados para continuar Portugal, nos confins do mar tenebroso que ajudámos a desvendar.

Abandonados, explorados e ignorados durante mais de cinco séculos, tínhamos seguido de perto as situações na Mãe Pátria a ponto de, por diversas vezes, termos corrigido rumos e ditado soluções ao país inteiro. Sempre esquecidos depois de precisarem de nós, foi preciso arranjarmos uma solução que nos permitisse resolver sozinhos os problemas. E não temos dado má conta do recado. Por isso, ao responder-lhe àquele grito de desânimo apelei aos nossos valores que nos têm mantido amigos desde então.

E foi com esse espírito de servir os açorianos que andámos de ilha em ilha, algumas vezes adiantando do nosso bolso as despesas de deslocação e estadia, reunindo, deliberando, erguendo a advocacia, a mais mal tratada da profissões, mas a mais nobre delas todas, ao patamar a que tem direito entre o concerto das profissões humanas.

Quantos dramas pudemos apreciar e julgar! Quantas soluções arranjámos para situações difíceis e complicadas! Quantas lágrimas enxugámos e quantos gritos de alegria despertámos com bom senso e prudência! É que, aos advogados se pede que emprestem a voz aos que dela não sabem fazer uso. E, muitas vezes, fazem de nós os bodes expiatórios da maldade dos que nem sempre se sabem conduzir dentro das regras do bom comportamento humano e nos usam para a defesa dos seus interesses inconfessáveis.

Não quero com isto dizer que sejamos todos anjos que todas as profissões têm as suas ovelhas negras. Mas há entre a maioria dos advogados, felizmente, gente séria e respeitável, embora nem sempre as pessoas tenham consciência dos trabalhos e das agonias que passamos para lhes defender os direitos e as causas. Quantas noites sem dormir pensando nos problemas dos outros? Quanta canseira e tormentos passamos à espera duma sentença ou dum despacho que teima em não chegar apesar dos esforços? Quantas derrotas inesperadas quando tudo parecia indicar que tínhamos levado a bom porto a causa que com tanta esperança depositaram nas nossas mãos, confiados no nosso saber jurídico e na experiência da barra dos tribunais? Quantas desilusões e decepções nos ofereceram o tempo e as pessoas?

Mas, cansados e esgotados, quanta alegria trouxemos a quem tivemos a sorte de conseguir ganho de causa. E são esses momentos em que conseguimos com o nosso modesto esforço que se faça justiça que nos compensam a espinhosa missão de advogar. E compensam plenamente.

Mas estava eu a falar-vos das nossas reuniões por esse Arquipélago de Deus. Foram tantas as ilhas que calcorreámos em inolvidáveis companhias de colegas que recordo com tanta saudade. O Dr. Manuel Linhares de Andrade, velho tribuno da Horta, príncipe entre os príncipes de educação cuja narrativa empolgante extasiava sem cansaço. Era vê-lo no seu Pico deslumbrante, cicerone documentado de novas e velhas histórias, congregar reuniões magnas com gastronomias de mestres consabidos e tocadores de guitarras encantadores que mitigavam a aridez dos casos que trazíamos entre mãos.

Eduardo de Oliveira, hoje tão doente, sempre preocupado com o dia a dia duma enorme família.

António Fantasia com a sua inteligência viva e permanente preocupação jurídica dos que fazem do direito e apenas dele a sua razão de viver.

Foi a festiva inauguração da nossa sede de Angra com a excitação de quem cumpre uma etapa importante na evolução duma instituição. E paro aqui um pouco para falar se me permitem, nos terceirenses, aqueles que marcaram a fogo a nossa história com tomadas de posição únicas no país cujo destino traçaram a partir deste torrão sagrado. Isso deu aos terceirenses uma tão interessante maneira de ser que não resisto a prestar dela o meu testemunho, tão entranhada ela está no nosso homenageado que me parece servir-lhe como boa luva.

Os terceirenses são o músculo da coragem e audácia da nossa inteligência e cultura colectivas. E têm sempre presente o que nos momentos cruciais fizeram; ora nos tempos sanguinários do Prior do Crato em que a nossa capital histórica foi passada à espada por ter tido a ousadia de permanecer portuguesa quando o resto do País se vendeu ao Castelhano.

Ou nos tempos da revolução liberal em que o País inteiro aclamou o usurpador e Agapito Pamplona, proclamou que, se ele estava ali proclamado, não o estava na ilha Terceira. E o País foi obrigado por essa vontade inquebrantável a banir os que se opunham ao progresso e às luzes do entendimento.

Por isso, Cota Moniz sempre tomou em público ou em privado postura de corajosa frontalidade jamais recuando perante obstáculos que pareciam intransponíveis. Sei que enfrentou aqui a velha questão da rivalidade entre as nossas duas ilhas. Em S. Miguel batia em nós de caras e sem medo. Na Terceira defendia-nos quando tínhamos razão.

E é esta sua postura que me faz permanecer a seu lado quaisquer que sejam as circunstâncias que nos afectem. A unidade dos açorianos é um bem sem preço que todos devemos proteger porque se não estivermos unidos de nada valeremos perante os inimigos poderosos e numerosos que nem precisam estar juntos para serem mais e mais fortes que nós.

Isto não quer dizer que não defendamos os nossos interesses particulares, puxando para a nossa ilha tudo a que ela tiver direito. Mas as nossas divergências devem conhecer tréguas quando o interesse geral estiver em perigo.

Frontalidade, coragem, honradez e lealdade, eis as qualidades do nosso homenageado que o transformaram em objecto de veneração, como homem, como colega e como servidor do estado que o foi sempre com o mais alto espírito de escravo das leis cujo cumprimento porém tem temperado com os meios que a cultura e o bom senso põem ao serviço do homem, pois que as leis se fizeram para os homens e não os homens para as leis, sob pena de se criarem regimes desumanos e implacáveis que não servem de nada nem a ninguém.

Como advogado, temos um jurista competente e um orador inspirado, com a palavra fácil e adequada à descrição rigorosa dos factos e à explanação científica do direito aplicável, tudo servido por um espírito independente insusceptível de subserviências ou lisonjas vãs.

Crítico quanto baste de ideias e de pessoas, sem que isso jamais o tenha levado ao desrespeito por colegas ou magistrados ou funcionários. Mereceu sempre, por isso o respeito geral.

Exigente que sem isso somos empurrados alegremente para um laxismo suicida e tolo. Não é por se facilitar o estudo das questões ou por se aligeirar as soluções encontradas que alcançamos o sucesso. As gerações mais novas têm a natural tendência para achar as exigências de rigor e eficácia como rabugices dos velhos mas acreditem que, se pode haver exageros condenáveis, a total ausência de exigências de qualidade não nos levam a bom caminho, apenas facilitarão a vida aos nossos inimigos que a vida, hoje em dia, mais que nunca, não é vivida no jardim do paraíso, mas é uma luta feroz, numa selva de interesses onde só sobreviverão os mais fortes.

E para que os vencedores não sejam apenas os que sabem fazer uso da força bruta, é preciso reconhecer nos homens, como Luís Filipe da Cota Moniz, que exigem tanto dos outros, como exigem de si próprios, o espaço que merecem as pessoas de bem, portadoras de inteligência viva e de robusta cultura.

Terceirense ilustre, açoriano dos quatro costados, colega leal, amigo precioso, bem-haja pelo seu exemplo, pela sua amizade e por ter enriquecido as nossas vidas com a sua maneira de ser.

Angra do Heroísmo 2010-04-17
Carlos Melo Bento

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Constipações

O deputado comunista Aníbal Pires defendeu que os açorianos não deveriam sofrer os efeitos das medidas decretadas para debelar a grave crise que atormenta o país porque não contribuímos para ela. E tem toda a razão; disseram-no os autonomistas de 1895 pela voz de Mont’Alverne de Sequeira, disse-o este vosso criado na crise de oitenta e di-lo agora o porta-voz dos comunistas açorianos. Tivemos sempre razão. Apesar de irritantes desacertos de que padecem todas as Administrações, que aparecem como nódoas no melhor pano, a verdade é que os governos açorianos têm governado com bom senso e equilíbrio, sem desperdícios, conseguindo que o nível de vida seja incomensuravelmente mais elevado que o dos antigos regimes (monarquia, república e estado novo). Se assim é, afora a Administração centralizada (justiça, defesa etc.), para sermos justos, não devíamos pagar a factura que, bem vistas as coisas, não nos pertence. Claro que para Pires apenas importa os trabalhadores (no que parece não incluir os patrões, vistos por ele como uma corja de mandriões que nada faz senão explorar aqueles). Bem sei que de quando em vez, lá fala nas pequenas e médias empresas com alguma simpatia mas isso só para não alienar os pequeno burgueses que na revolução sempre são de alguma utilidade. Falo na posição de Pires sobre a crise porque parece que é a primeira vez que o seu partido toma uma atitude que toma em conta os açorianos como uma realidade diversa e isto (se ele não for entretanto mandado para a Sibéria!) é um avanço colossal numa mentalidade sempre fechada à nossa realidade histórica e geográfica (por esta ordem). Saúdo pois os ventos da mudança no partido de Lenine pois que, por uma janela aberta num dos extremos da casa pode entrar uma constipação benigna que infecte outros recantos menos extremistas.
Carlos Melo Bento
2010-10-25

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Mudar

Causaram estranheza as notas das nossas escolas quando comparadas com as dos restantes estabelecimentos de ensino do País. Foram humilhantes, inesperadas, embaraçosas. Mas o que correu de errado? Foram os programas? Foram os professores? Foram os alunos? Foi a nossa sociedade laxista e computorizada com os meninos agarrados à Internet de manhã à noite e os pais nas tintas, no afã de darem tudo aos meninos sem nada pedirem em troca? Vai lá saber-se. Mas alguma coisa tem de ser feita de imediato, porque se nós perdermos a juventude, está tudo perdido. Bem podemos arriscar a vida e a liberdade que será tudo em vão, porque se os nossos filhos tiverem piores notas que os filhos dos outros, não tenham dúvidas que vão ser criados destes. Nem vale a pena pensar que a emigração é a escapatória do costume para a nossa impotência, porque ir para o estrangeiro sem instrução é condenarmo-nos a ir limpar as retretes dos outros e mais dois empregos para mandarmos os filhos para a Universidade, de onde saem com vergonha do nosso estatuto social, mudando os nomes para Franks e Rogers e não falando a língua pátria para não haver misturas com os green horns que é a alcunha que dão aos que não se fingem logo americanos ou canadianos. Sejamos justos, ganhar mais com trabalho escravo e estatuto de estrangeiro pouca felicidade dá a quem chora a tristeza do afastamento que nem todo o dinheiro deste mundo compensa. Há que concertar o que está mal no ensino e nas nossas casas. Há que exigir mais de todos: políticos, professores, pais e alunos. Muito mais. De que vale termos instalações escolares modelo, com tudo o que há de mais moderno e pedagógico, se ninguém aprende o suficiente? Somos tão bons ou melhores que os outros. Que rolem cabeças que se imponham sacrifícios de toda a sorte mas que se mude isto que não está nada bem.
Carlos Melo Bento
2010-10-19

domingo, 17 de outubro de 2010

Homenagem à Soprano Açoriana Eulália Mendes

Senhora Presidente da Câmara Municipal, Dr.ª Berta Cabral
Senhor Vereador para a Cultura José Andrade
Senhor Secretário-geral da Fundação Sousa d’Oliveira, Dr Almeida Mello

Senhoras e Senhores

Eulália Maria Arruda Arraial Bettencourt Mendes nasceu na Praia da Vitória, a então risonha vila da nortenha da celebrada Ilha Terceira de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Seu pai Manuel Arraial, aqui presente com uma saúde de ferro nas suas quase 99 Primaveras e apaixonado músico micaelense de Vila Franca do Campo, onde foi inesquecível maestro da gloriosa Banda União Progressista, iniciou a filha querida na arte de Euterpe, uma das nove musas filhas de Zeus, o rei dos deuses e de Mnemósine, aquelas mesmas que presidiam às artes liberais.
A jovem Eulália receberia mais tarde aulas de piano da professora Maria Letícia Mourato. A partir daí, o belo canto falou mais alto e, no Conservatório Regional de Angra do Heroísmo, entrou Eulália na Classe de Canto da professora Luísa Alcobia Leal. Em 1990, após vários anos de apurado labor, prestará provas de exame no Curso Superior daquela prestigiada instituição e obtém a elevada classificação de 19 valores na licenciatura.

A sua preparação musical não parou pois vai então trabalhar com as consagradas professoras Helena Pina Manique, Joana Silva, Cristina Castro e Liliana Bizinech ao passo que frequenta a Master Class dirigida pela internacionalmente famosa Ileana Cotrubas.

Os Açores são então o seu palco privilegiado, participando em todas as ilhas em concertos e recitais e, como solista, colabora com vários agrupamentos corais e instrumentais.

Em 1992 realizou, em Lisboa e Porto, os recitais de lançamento do livro do grande mestre da música portuguesa, Lopes Graça. Não foi por acaso que Eulália Mendes foi a escolhida para abrilhantar essas cerimónias com a sua inimitável interpretação da “Lira Açoriana”.

Foi muito aplaudida a sua actuação no concerto integrado nas cerimónias de comemoração do 25º aniversário da geminação de Angra do Heroísmo com Tulare, na Califórnia, em que Eulália Mendes, foi acompanhada pela Orquestra Sinfónica daquele condado americano, em que cantou as “Trovas”, êxito que foi repetido em Visalia, com a mesma orquestra.

Ficou também na história da música açoriana a sua participação nas I Jornadas Musicais sobre Francisco de Lacerda, no 1º. Ciclo do Órgão dos Açores e na série “Concertos no Palácio” na sede do Governo Açoriano em Santana.

A sua carreira atingiu um dos pontos mais altos quando integrou a representação açoriana à EXPO98 realizando, acompanhada pela consagrada pianista açoriana Ana Paula Andrade, no Dia dos Açores, em que realizaram um recital de canto e piano integralmente preenchido com obras de poetas e compositores açorianos.

Como solista, interpretou a “Missa de Santa Cecília” de Charles Gounod, dos “Stabat Mater” de Gioachino Rossini e Giovani Battista Pergolesi, do “Requiem pro defunctis” de Domenico Cimarosa, da “Missa brevis em Sol maior” KV140 de Wolfgang Amadeus Mozart e do “Oratorio de Noël” de Camille Saint-Saëns.

Nos concertos e recitais que efectuou foi acompanhada por Ana Paula Andrade, Antoine Sibertin-Blanc, António Duarte, António Teves, Cristiana Spadaro, Dora Vidack, Duarte Rosa, Galina Bolkovitinova, Gustaaf Van Mannen, Jannen Hoffman, Les Bundy, Lúcio Medeiros, Luís Loura, Margarida Magalhães de Sousa, Maria João Carreira e Svetlana Pascoal.

Actuou ainda, em diferentes projectos musicais, com as Orquestras de Câmara, da Academia Musical da Ilha Terceira, da Câmara Municipal de Ponta Delgada e Horta Camerata, da Orquestra Clássica da Madeira, Tulare County Shymphony e Banda Militar dos Açores e com os Coros Padre Tomás de Borba da Academia Musical da Ilha Terceira, dos Conservatórios de Angra do Heroísmo e Ponta Delgada, Coral de S. José e da Associação Musical Edmundo Machado Oliveira e First Baptista Chorus, da Califórnia.

Por deliberação de 2 de Junho de 1999 a Câmara Municipal da sua cidade natal agraciou-a com a medalha de Valor Cultural e espero bem que não tenha sido a última, pois senhora Presidente, a cidade que escolheu para viver pode bem conceder-lhe o galardão que o seu enorme talento artístico merece.

Depois de, entre 1985 e 1990, exercer funções de animadora pedagógica de Música na Secretaria de Educação e Cultura, leccionou durante 5 anos Expressão Musical no Departamento de Ciências da Educação da Universidade dos Açores.

Tenho por Eulália Mendes a admiração devida à mais maviosa voz açoriana do seu tempo. Mulher encantadora cantou e encantou nas cerimónias religiosas dos casamentos dos meus filhos em 1995, na histórica Igreja de Santo André de Vila Franca do Campo, em 1996 na reconstruída ermida da Mãe de Deus de Ponta Delgada e, em 1999, na Capela Real de S. Pedro desta cidade, e mais tarde no baptizado do meu neto mais velho, meu homónimo, nesta mesma Capela. Já em 2009, quando celebrámos o centenário de meu Pai, Alfredo de Melo Bento, foi a sua voz que se ergueu na Matriz de Vila Franca do Campo, a Igreja dos nossos antepassados (dos dela e dos meus) enchendo as nossas almas da alegria que só o belo canto transmite. A divina voz desta soprano maravilhosa transformou, simples cerimónias religiosas, em momentos altos das nossas vidas em que todos nos sentimos mais perto do criador em momentos cruciais das nossas breves existências.

É certo que os artistas que a acompanharam em tais actuações partilharão naturalmente dos louros alcançados mas a ela se ficou a dever a mais alta expressão musical atingida pelo trabalho dessas harmoniosas equipas.

Ainda se não me apagaram da memória as lágrimas que choramos, aquando da missa de requiem por um colega advogado faialense que desapareceu tragicamente no desastre aéreo de S. Jorge, tal foi o sentimento e a perfeição que a sua voz magoada atingiu em tão triste ocasião. Nunca se tinha ouvido nada assim e temo mesmo que nestas ilhas nunca mais se torne a ouvir coisa tão comovedora.
Por último, queria dizer que a Fundação Sousa d’Oliveira se orgulha de conceder ao soprano Eulália Maria Arruda Arraial Bettencourt Mendes o diploma de membro de honra, da sua classe das artes, cujo diploma gostaria que lhe fosse entregue nesta cerimónia pela senhora Presidente da Câmara já que quis com a sua presença premiar a maior cantora açoriana.
Obrigado a todos.
Carlos Melo Bento
2010-10-15

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Sublime

Foi muito agradável saber que o PSD de Berta Cabral decidiu finalmente avançar com uma proposta autónoma de revisão constitucional que, por os interesses do Povo Açoriano o imporem, fica a divergir do restante partido. Não deve ter sido coisa fácil mas aí está: a afirmação de que a autonomia não é uma figura de retórica ou um pretexto desonesto para impedir o normal desenvolvimento dum Povo que começou por ser o mesmo mas que, transplantado para território distante, teve e tem um destino diferenciado. A autonomia é isso mesmo, é a manifestação do querer colectivo que garante a sobrevivência do que é autónomo, nos termos em que este achar adequado, oportuno e conveniente. Graves responsabilidades tem esse partido na forma e conteúdo da actual autonomia. E, pese embora que não unanimemente acolhida por todos os açorianos, a verdade é que foi ela a vencedora e que, apesar de tudo, tem feito caminho. E mal era, quando o PS finalmente no poder, percebeu o espartilho em que as suas cúpulas o tinham apertado nos anos setenta, impedindo-o de plena realização agora, e se lança numa saudável iniciativa de colocar as instituições e as leis ao nosso serviço ( e não o contrário ), que o PSD não avançasse rapidamente para o patamar, livre de instituições colonialistas, e de proibições tutelares humilhantes e antidemocráticas que foi a sua pedra de toque primordial. É um passo de gigante e podemos gabar-nos de termos assistido a mais um momento histórico da nossa vida política, em que se abre pela primeira vez a porta para o sonho de Mont’Alverne: a frente imbatível de todos os deputados insulares. É ainda uma lição para o país e para o mundo, de que a política pode ser sublime quando a servem seres de excepção.
Carlos Melo Bento
28.09.2010