sábado, 22 de agosto de 2009

Victor Meireles

Biografia
Discurso proferido em Água Retorta, a 20 de Agosto de 2009, na apresentação do seu livro:
Extractos Paroquiais, baptismos, da Paróquia de
Nossa senhora da Penha de França de Água Retorta [1768-1905], I, II.


Senhora Vereadora da Cultura da Câmara Municipal da Povoação
Senhor Vigário Episcopal, Professor Doutor Octávio Medeiros,
Digno Presidente da Junta de Freguesia de Água Retorta, Senhor Baltazar Franco
Senhoras e Senhores
A tarefa de que me incumbiram hoje é das mais fáceis e agradáveis que, como orador convidado, me foi dado desempenhar. Apresentar o livro dum amigo de longa data, não deve ter dificuldade como de facto não tem. Já vos falarei do livro mas permitam-me dizer-vos alguma coisa do seu autor.

Victor Manuel de Lima Meireles Pacheco, que usa o nome artístico de Victor Meireles, quando começou a escrever contos e poemas nos nossos jornais, não tinha mais de 17 anos. O Açoriano Oriental, o Correio e o Diário dos Açores desde sempre acolheram com simpatia a colaboração de jovens escritores. Foi no mais antigo jornal português que Antero de Quental publicou as suas primeiras poesias e certamente todos sentiram o mesmo regozijo ao verem as suas incipientes produções estampadas em letra de forma, estimulando-os a publicar ainda mais e a prosseguir vida fora nesse árduo trabalho de contar sentimentos e narrar coisas imaginadas que tanto encantam as nossas almas nas mais diversas ocasiões das nossas vidas, sejam elas de tristeza profunda ou de alegria exaltante. Aí começou e aí continua Meireles a escrever contos, opinião, poesias. Até hoje e oxalá continuem as musas a inspirá-lo durante muitos e bons anos.

Mas, comecemos do princípio. Victor Meireles nasceu em Ponta Delgada na segunda metade do século XX em família numerosa, como todas as de então.

Frequenta a escola do Campo de S. Francisco até que sua família se muda para a Alameda de Belém, nos então subúrbios da cidade e continua os estudos no Externato Colégio do Infante, onde a Oposição à Ditadura de Salazar reunia os seus expoentes ligados ao ensino e onde certamente lhe despontou o espírito liberal e o gosto pela literatura e pela poesia.

Foi funcionário público na sua adolescência mas é compelido ao serviço militar onde permaneceu mais de dois anos, findos os quais se estabelece em Lisboa, onde o convívio com José Pracana, fadista e homem de cultura lhe abre as portas para o mundo intelectual da então capital do Império e onde a sua curiosidade o levaria a museus e a teatros, a bibliotecas e tertúlias que muito contribuíram para formar o seu espírito inquieto e talentoso a ponto de, muito novo ainda, ter ganho um prémio literário que em jogos florais lhe concedeu a Câmara da Ribeira Grande pelo seu conto Rosa Alberto e que a sua timidez impediu de ir receber pessoalmente.

Convive ainda em S. Miguel e enriquece o seu espírito insaciável com poetas e escritores de vulto como Oliveira S. Bento, Ruy Galvão de Carvalho e Armando Cortes Rodrigues. Priva com o poeta do Cântico das Fontes que por ele tem a ternura que suscitam os iniciados, a ponto deste lhe abrir as portas em Lisboa para o contacto com o grande Almada Negreiros. Naquela cidade, começou também o seu convívio íntimo e prolongado com Natália Correia, essa micaelense de génio, vulcão incontrolável de produção literária única reconhecida internacionalmente como poetisa e escritora de altíssima estatura cultural. A maior da poetisa portuguesa do século XX, no dizer insuspeito de Sousa de Oliveira esse outro gigante da nossa cultura que introduziu a arqueologia entre nós.

Natália nutria por Meireles uma amizade profunda, duas almas que se encontravam no mundo da poesia em que ambos reinavam como grandes senhores, ela incontestada, Victor amarrado na sua ilha, iria sofrer aliás como Cortes – Rodrigues, da timidez açoriana para com os seus mais altos valores que se recusam a abandonar definitivamente a terra natal.

Paremos um pouco nesta amizade entre os dois vates. No Botequim em Lisboa onde Natália mantinha um círculo de amigos íntimos ligados à cultura e à política ou em New Bedford, em casa de Victor Meirelles onde viveu enquanto lá esteve, e que o levou a publicar, New York - New York com Natália Correia, ou na sua Casa do Colégio em Ponta Delgada onde o visitou e participou num dos serões literários mais longos e interessantes a que me foi dado assistir em que participaram José de Almeida, António Pracana esse jurista de prestígio, a cujo convívio e vasta cultura ficou a dever grande parte da sua formação intelectual, Maria Luísa Ataíde, Dórdio de Guimarães, Sousa de Oliveira, reunidos à volta dum excelente bacalhau de natas que o nosso poeta confeccionou, outro dos seus talentos ocultos… Natália quis dar o sinal da admiração pois não me consta que ela se dignasse fazê-lo perante outra pessoa com menos capacidade poética e intelectual.

A admiração é mútua, pois Victor Meireles irá fazer-lhe a genealogia mas que a grande poetisa não chegou a ver porque entretanto morreu subitamente em casa, sozinha, apesar do medo que sempre teve em estar só. Ela tinha-lhe dado a rara honra de prefaciar uma das suas obras. E eu não resisto a ler-vos essa pequena jóia da nossa literatura

Lisboa, 23 de Dezembro de 1987

Querido amigo

Recebo finalmente os seus poemas há muito prometidos. Em boa hora de reforçar a identidade de uma poesia de insularidade chegam-me eles invadidos por esse mar que lhe bate nos pulsos e lhe desliza pelos dedos “com o peixes azuis afogados em guelras de soluços”.

Poesia de um ser naufragado no barco imóvel que é a ilha, a comer as trevas da sua solidão, eis a sensação que me transmitem os seus versos. Um registo de coisas açorianíssimas: o avô pescador, quase feito de sal a falar-lhe de sereias e areais, ascendência que o predestina a ser, na poesia, um “pescador de palavras”….O pranto das mães dos homens que emigram como andorinhas em busca do sul….e, no mais, uma ânsia paralítica de vida encalhada no insulamento.

Singularidades da configuração insular açoriana que, no ofício do seu dizer poético, ganha um novo e rico elemento para a antologia açórica.

Recebe as felicitações amigas da

Natália Correia

É neste período da sua vida que se enriquece viajando pelo mundo, pela Rússia, pela Europa de Paris a Londres, de Florença a Roma onde os museus foram visita obrigatória e demorada e onde certamente despertou para a pintura que passou a cultivar com o mesmo talento e inspiração e que tanto tem maravilhado as nossas almas, durante toda a sua proveitosa vida. E na América onde sua adorada Mãe se acolhera para junto de outros filhos e netos ele vai cursar pintura na Ritner´s School of Bóston. Regressado à terra natal, logo chamam para a Direcção da Academia das Artes e para membro do Instituto Cultural de Ponta Delgada.

As suas pinturas encerram no fundo os mesmos anseios da sua misteriosa poesia. Cores suaves e formas telúricas, agigantadas numa imaginação fértil, derramadas por flores e plantas de dimensões estranhas e belas. Bosques românticos e estradas desertas onde só as almas eleitas passeiam sem serem vistas. Cores intensas e maravilhosas esparramadas em universos desconhecidos e fascinantes, nesta última fase do artista, eis o que um público desconcertado pela nova dimensão do poeta procura e recolhe.

Nesta capítulo da sua imensa produção cultural vai ter o convívio de dois grandes talentos das belas artes: Maria Luísa Costa Gomes e sua filha Luísa Constantina. Uma e outra na pintura e na escultura, mau grado a curta vida da mais nova, ocupam largo espaço na história da arte açoriana e certamente o mais importante do século XX. Nos Estados Unidos, onde desenvolveu um interessantíssimo comércio de antiguidades, a sua alma generosa vai ter tempo para ajudar Maria Luísa que ali estabeleceu um muito procurado atelier e escola de pintura, numa época muito difícil para a vida da pintora de flores mais perfeita, intensa e penetrante que a nossa terra conheceu.

E as suas pinturas são exibidas e cobiçadas em diversas exposições colectivas e individuais, em Ponta Delgada, Flores e Graciosa, com assinaláveis êxitos.

Como contista e poeta, Victor Meireles deu à estampa várias obras de que destaco As Amarras, Nunca Mais e Foi Sempre, O Todo a Parte Alguma, A Lapinha, Amargo Lírico, Memórias d’Ontem – Natais d’Hoje e O Anjo. Só a leitura atenta e vagarosa destas pérolas da nossa literatura contemporânea podem dar a verdadeira dimensão das mensagens que o autor do Sorriso de Cristal, esconde nas histórias de encantar que nos conta.

Eis o homem cujo segundo livro Água Retorta vai ter à sua disposição. Poesia? Conto? Álbum de pintura? Não meus amigos. Extractos dos livros da vossa paróquia, ou sejam os resumos dos assentos de baptismo que os vossos bondosos párocos foram fazendo durante os 5 séculos que para aqui estamos, enviados pelo senhor Infante D. Henrique, terceiro e tão famoso filho do mui alto e poderoso senhor Rei D. João I, o de Boa Memória.

São os vossos nomes próprios, os de vossos pais, padrinhos, sacerdotes e pessoas de estado que porventura se dignaram assistir como testemunhos ao mais importante acto da liturgia católica e o Dia, o Mês e Era em que ocorreu. Desta vez o seu autor transcreveu de 1768-1905, cento e trinta e sete anos! Quantos bebés nasceram, quantas alegrias e tristezas deram a seus pais, quantos viveram para procriar? Quantos heróis? Quantos sábios, quantos santos? Tudo isso num pequeno livro, roubado aos poemas, aos contos e às pinturas. E porquê?

Conta-se em poucas palavras que já vejo alguns a bocejar, não porque o tema seja fastidioso mas porque o orador não sabe mais.

A genealogia é uma ciência que trata da identificação dos nossos antepassados e é auxiliar da História, não só porque há muitas Marias na Terra como porque revela pormenores da vida dos que constam dela que ajudam a escrever aquela com rigor e interesse. Não se esqueçam de que aqueles que desconhecem a história se arriscam a repeti-la porque só sabendo-a podemos evitar errar de novo.

Mas Victor Meireles vai nascer para a genealogia por causa da origem da sua própria família. Sua estremada Mãe era dos Ginetes, e esta risonha freguesia da costa Sul de S. Miguel vai exercer um fascínio irresistível para o meu biografado a ponto de lá ter mandado restaurar uma antiga moradia onde no Verão respirou o mesmo ar dos seus maiores e se inspirou para as mais belas poesias que escreveu. Descendente directo do Cavaleiro de Malta, o mesmo que foi padrinho do baptismo de Madre Teresa da Anunciada, a do Senhor Santo Cristo, Frey Joam Meyrelles, ficou deslumbrado com o que conseguiu saber de si próprio. Os ensinamentos do grande mestre que foi o Dr. Hugo Moreira e do grande mestre que é Cristiano Ferin, aqui nesta sala, graças a Deus, vivo e são e sempre trabalhando numa arte em que além de decano é venerado e o invejável nonagenário mais sabedor sobre as famílias antigas de S. Miguel.

Acabada a genealogia de sua Mãe, que o levaria a fazer os extractos dos Ginetes ainda, por desperdício dos responsáveis, inédito, voltou-se então para os Pachecos de Água Retorta terra da família de seu pai, onde as surpresas não foram menores com a obtenção de preciosas informações sobre a chegada dos seus primeiros familiares do tempo do povoamento.

Os conhecimentos aí obtidos deram-lhe porém afoiteza e à vontade nos estudos genealógicos, a que se dedicar e vai daí, além de publicar diversos trabalhos como Carlos Alberto Velho Falcão Canário Melo – Subsídios Genealógicos, Cecília Meireles – Aspectos para uma Biografia, e a Genealogia de Natália Correia, começa a dar à estampa a publicação dos extractos da Ribeira Quente na revista Insulana, em que tem em vista ajudar os emigrados na sua incessante busca pelas raízes centenárias. E tem prontos para publicação, além dos Ginetes de que falei, os baptismos e casamentos do Nordeste, que oxalá sejam postos quanto antes à disposição dos estudiosos. É que, como já disse tanta vez, os açorianos são dos poucos povos privilegiados que sabem quem são os seus Adão e Eva. E tão poucos têm sabido aproveitar-se disso. Haviam de ter visto a cara de felicidade do nosso prémio Nobel, Craig de Mello, quando o Dr. José de Almeida Mello lhe ofereceu a genealogia!

Como genealogista consagrado, participa nos tão interessantes cinco encontros na ilha Graciosa, em que fez as comunicações que lhe competiam, a par dum Jorge Forjaz e dum Oriolando da Silva e tantos outros.

O livro que está aí é a sequência dos Extractos de Casamentos que faz hoje um ano, lançou nesta mesma freguesia e é bom que o tenham porque é obra monumental única (mil e trezentas páginas em dois volumes de excelente apresentação gráfica) mas que não interessa apenas aos habitantes da terra do Comendador Furtado Leite e sim a tantos e tantos que descendem daqueles dez ou doze casais que aqui fundaram o que Frutuoso descreveu como:
"Apegado à Grota Funda, a um tiro de pedra, está uma fonte de tão grossa água como coxa de um homem, que nasce em meia rocha, ao pé de uma fajã pequena; acima da qual fajã e da outra atrás dita está uma povoação de gente, de até dez ou doze casais que se chama Água Retorta por respeito da fonte que pela rocha cai em voltas, e são da freguesia do Faial.

D’Água Retorta , que parte com o Lombo Gordo na banda do ponente, se começa o termo de Vila Franca, porque ali fenece o do Nordeste.

De Água Retorta, donde agora mora João Roiz, pessoa nobre, até o Faial, pela terra dentro, estão estas fazendas: - junto de Água retorta, está o lombo dos Bardos e o Juncal e Roça Grande, em cima da Rocha, e a Fajã do Calhau ao pé da rocha junto do mar, e a Fajã do Louro no meio da rocha, que dá muito pastel, e a Rocinha que está sobre o lugar do Faial. Dependurada em cima da rocha, e outra fazenda que se chama a Lapa, terra que também dá trigo, e outra chamada o Guindaste, dependurada sobre a ribeira que corre ao lugar; arriba dela a Couvinha, que dá também novidade e tem criações, e outra que se chama as Quebradas, acima da Couvinha, ao longo da mesma ribeira, onde há muitas comedias de gados e muitas frescas fontes; e outra fazenda terra chã, mais acima, que dá pão, chamada os Moios das Quebradas; e logo acima outra terra de comedia de gado, que por ser mais alta se chama a Cumieira. Todas as quais fazendas que serão uma légua de terra, partindo com Francisco Fernandes, sogro de Matias Lopes, até o lugar do Faial, foram de João Afonso, o Velho, e agora são de mais vinte e cinco seus herdeiros, que partem pela banda do norte com os herdeiros de Domingos Afonso, sogro do licenciado Bartolomeu de Frias.
Um João Martins, de alcunha Calca Frades, morador nas Hortas de Vila Franca do Campo, vendeu dez ou doze moios de terra de pasto, onde agora chamam Água Retorta, a João Afonso do Faial, o Velho, por pano de Londres, azul, para um Gabão, que agora dá muito trigo e pastel e é de João Roiz Cordeiro, filho de Pêro Roiz Cordeiro".

Gostava de terminar com três poemas de três grandes poetas desta terra:

De Armando Cortes Rodrigues a:

Carta para Longe

“Maria!
Estimarei
Tua saúde e dos teus,
Pois a nossa, ao fazer desta,
É boa graças a Deus.

Depois que daqui saíste
Nunca mais houve alegria,
Que no céu da nossa vida
Veio a noite e foi-se o dia.

Saudade é como o luar,
Só de noite é que brilha;
O muito que por ti choro
Nem tu sabes, minha filha.

A dor em que teu pai vive!
Basta olhar-lhe para o rosto…
Envelheceu…nunca mais
Para nada teve gosto.

O craveiro do balcão
Já se secou, coitadinho…
Faltou-lhe a luz dos teus olhos
E o modo do teu carinha.

A tua cadeira baixa
Lá está junto à janela,
Como quem ainda espera
Que te venhas sentar nela.

Maria, manda dizer
O que por lá tens passado.
Triste velhice de quem
Não tem os seus a seu lado…

Para aliviar minha dor
- Coração de mãe não mente -
Cria um filho com amor
E vive, depois, ausente.

A bênção de Deus te cubra
Com amor, paz e saúde
E lembra-te que a riqueza
Verdadeira é a virtude.

Não te esqueças de teu pai,
Lembra-te sempre de mim.
Adeus…adeus…que as saudades
Só à vista terão fim!”

De Natália Correia, no Dilúvio e a pomba, a parte relativa às Furnas:

“Eram, nas Furnas, caldeiras
guelras que o vulcão abria,
Mas, se enxofradas as sombras
em chumbo e cachão ferviam,
a luz, por vales e lombas
em hortênsias se aspergia,
que não se ganham os deuses
sem demos por mais valia.
Por isso ali o inferno
com o céu não contendia.
Vai daí que me ficasse
esta concórdia sadia
de não frequentar negrumes
sem numes por companhia.
Ou o contrário se quiserem
que se Deus dá flor e fera
eu sou por esta harmonia”.

De Antero de Quental, um trecho das Fadas:

“As fadas eu creio nelas
Umas moças e belas
Outras velhas de pasmar
Umas andam pelos arvoredos
Outras pelos rochedos
Outras à beira do mar.
Quantas vezes já deitado
mas sem sono, inda acordado
me ponho a considerar
que condão eu pediria
se uma fada um belo dia
me quisesse a mim fadar”.

E para terminar quero ler-vos o poema sobre o mesmo tema, do nosso escritor:

As fadas

“A vida é um desperdício
pelas coisas que nos são dadas
e corremos toda a vida à procura
de agarrar os sonhos das fadas.

E as fadas que mal fadadas
se deixaram apanhar
foram elas as perdidas
de tanto nos fazer sonhar.

Ficaram enrugadas e tristes
e atiraram-se connosco
para o fundo do mar
levando-nos nas suas asas presas
as nossas mãos vazias
daquilo que não nos puderam dar”.

Obrigado por me terem ouvido

Carlos Melo Bento
2009-08-19

1 comentário:

Paulo Ferro disse...

Obrigado Dr. Melo Bento...obrigado por tudo o que escreve...e obrigado acima de tudo por contribuir para o orgulho que sinto por ser Açoriano!
Bem haja...