domingo, 30 de dezembro de 2007

Congresso de Cidadania

PARTICIPAÇÃO CÍVICA E POLÍTICA NA HISTÓRIA E NA TRADIÇÃO AÇORIANAS

Comparticipação de Carlos de Melo Bento

Devo à gentileza do dr. Laborinho Lúcio o convite para aqui estar, ensaiando buscar na História açoriana o exercício da cidadania. Não é tarefa fácil aquela de que o Ministro da República me incumbe mas mal andaria se não tentasse salientar em alguns períodos dos quase seis séculos da nossa vivência insular, os exemplos do exercício dos deveres de cidadania que ao mesmo tempo são direitos, em momentos especiais da nossa História.

Agradeço o gesto, ao homem público a quem a minha profissão ficou em dívida na credibilidade e eficácia pois que, como Ministro da Justiça, soube dar à advocacia o estatuto que nunca nos tinha sido reconhecido, de acreditar actos antes só atribuídos aos notários, que nos foram facultados com a mesma força probatória, bem como retirar aos tribunais, em primeira instância, o poder de julgar certas faltas profissionais, restituindo-nos o que outros nos haviam tirado.

Falar-vos-ei da cidadania escorado na História do Direito nos Açores, casuisticamente documentada de forma a vermos com mais clareza como funcionaram aqui as instituições criadas por legisladores distantes e divorciados das nossas realidades.

1.- Tudo começa quando o Infante, que nunca cá esteve, se fez representar nas suas ilhas por capitães, a quem deu poderes públicos que lhe haviam sido por sua vez atribuídos pelo Rei, representante de Deus, por graça de quem reinava.

Os Açores descobertos entre 1427 e 1432, afora o direito público gerado pela doação destas ilhas a quem as mandou descobrir, só depois do povoamento iniciam a sua história do direito.

O Infante foi o donatário também por ser Mestre da Ordem de Cristo, a quem o Papa concedeu o poder espiritual e temporal sobre as terras descobertas e seus habitadores. E, numa primeira fase, esse poder é total e quase absoluto, só depois temperado, no espiritual, pelo dos Bispos, entretanto criados e, no temporal, pelos corregedores, ouvidores e juizes de fora quando a administração pública se tornou complexa e o Rei centralizador.

As Ordenações Afonsinas ficaram prontas em 1446. Santa Maria começou a ser povoada em 1439, na mesma altura do desastre de Tânger.

Ora, a Gonçalo Velho Cabral, Comendador de Almourol e Senhor de Pias e descobridor dos Açores, foram dadas as capitanias de Santa Maria e de S.Miguel e na carta de nomeação, o Infante outorga-lhe poderes que esclarecem o viver antigo, pois os primeiros açorianos constituíram uma comunidade rigidamente regulada, disciplinada e organizada.

São-lhe dados poderes, tanto no campo cível como no criminal mas obrigam-no a apresentar as partes desavindas perante juizes da terra que deverão aplicar o direito. Isto é, o direito geral legislado, o consuetudinário, acrescido depois da legislação que foi sendo produzida só para nós e que haverá de desaguar no regime autonómico do século XIX.

O capitão do donatário funciona ainda como instância de recurso para onde as partes podem apelar e agravar das sentenças. Apelar, então, significa declarar que se quer recorrer e agravar é fazer um instrumento notarial perante tabelião com a sentença, os seus fundamentos e as alegações de recurso (Marcello Caetano, in História do Direito Português, 1140-1495, p.407). Do capitão recorre-se de agravo ou de carta testemunhável para o Infante, sem efeito suspensivo, com exclusão expressa de todas as outras Justiças, devendo então o capitão sustentar a sua decisão.

Quanto aos feitos criminais, o próprio Capitão é que os julga, podendo aplicar aos culpados penas de prisão, degredo e açoutes, sem que disso possa apelar-se.

Tratando-se, no entanto, de crime tão grave que mereça talhamento de membro ( mão, pé ou língua) ou pena de morte, os acusados deverão ser julgados e, quando condenados, só podem apelar para o Infante que deverá enviar o processo para a Casa do Rei onde o recurso é julgado a final.

O infante determina ainda que quem violar esta regra e usurpar os seus poderes, pagar-lhe-á mil reis por cada vez, para além naturalmente das penas que a lei geral previa para o caso.

Quanto aos tabeliães, os que se enganarem por falsidade deverá o capitão suspendê-los imediatamente do ofício, comunicando o facto ao Infante para que este determine a pena a aplicar.

Perante este quadro legal, vejamos o que aconteceu na Povoação Velha de S.Miguel, em 1444, no momento da chegada dos primeiros povoadores, a 29 de Setembro, dia da dedicação do Arcanjo S.Miguel, patrono de Portugal e o Santo da especial devoção do Infante D. Pedro, Regente do Reino nessa data e que dá o nome à ilha.

Os primeiros povoadores “ desembarcaram” entre “ duas frescas ribeiras de claras, doces e frias águas, entre rochas e terras altas, todas cobertas de alto e espesso arvoredo de cedros, louros, ginjas e faias” .

Um Guineense, num Verão, vira pela primeira vez esta ilha, da Serra do Norte de Santa Maria. Isto senão acreditarmos na tese cartaginense ou na do grego que setenta anos antes aqui estivera com carneiros lançados na Lagoa mas que não sobreviveu muito tempo, à experiência zoológica.

Os povoadores trouxeram gado e aves e sementes de trigo e legumes e outras coisas necessárias.

Fundaram então, a primeira “povoação de gente” que erguemos nesta ilha e, para diferençar das outras, se chamou “ Povoação Velha”, orgulhoso toponímico que marca o início da grande aventura micaelense, junto da primitiva Igreja de Santa Bárbara, onde foi dita a primeira missa seca.

Sabemos o nome desses heróis, de que destaco estes: Jorge Velho, sobrinho do Rei de Fez e afilhado de baptismo de Gonçalo Velho. Pela proximidade das datas convenço-me que este príncipe árabe, tenha servido de moeda de troca com o infante D. Fernando, que morreu cativo em Fez, depois do desastre de Tânger, em 1439. Escrevi ao Cronista - Mor do Reino de Marrocos e ao Prof. Dr. Abdel Hadi Tazi e julgo que a tese que este defendeu depois desse meu contacto, confirmou a minha suspeita. Ele era o chefe dos cavaleiros mouriscos, fidalgos de África e da Casa do Infante. A mulher, África Anes, era filha de Gonçalo Anes de Salamanca, e enviuvou muito nova deste nosso povoador de quem teve filhos de apelido Jorge.

Além deles, os nobres fidalgos, da mesma casa, e de sangue limpo, Gonçalo Vaz Botelho, o Grande, fundador da Povoação, de Vila Franca, o mais velho e o mais importante de todos; de sua mulher apenas sabemos que vinha grávida; Afonso Anes, o Cogumbreiro descendente de Anes da Costa da Raposeira, no Algarve e que D. Henrique, cognominou assim pela razão de ter muitos filhos como os cogombros. Era casado com uma senhora Carneiro, do Porto.

Gonçalo de Teves Paim era francês, de Paris que teve poderes para distribuir terras e foi almoxarife, ou seja o Director de Finanças, e seu irmão Pedro Cordeiro que foi Escrivão do almoxarife e Notário Público ou Tabelião como então se dizia, de Vila Franca do Campo (a primeira capital), e de toda a ilha, e tinha 4 filhas muito formosas e virtuosas. Ele fazia escrituras em pergaminho “breves e de poucas regras, rematadas com palavras mui judiciais e discretas” .

Sem que o soubessem, porém, algum tempo antes, tinham fugido de Santa Maria, para ali, num pequeno barco bem aparelhado, um casal loucamente apaixonado e um amigo.

O pai da rapariga não consentia no casamento ou porque o rapaz pertencia a classe social inferior (e isso era proibido por lei, sob pena grave, se não fosse autorizado pela autoridade pública) ou por ela ser cristã, e o namorado mouro ou judeu; ou porque a mulher era casada e o adultério podia ser castigado com a morte de ambos; o amigo facultou a pequena embarcação, à vela, e se calhar concebeu o plano.

Os povoadores, ao desembarcarem, ficaram maravilhados com os rastos e sinais de gente na terra e na areia.

A mulher de Gonçalo Vaz, ao caminhar por entre o feno alto que havia perto da ribeira do oriente junto onde esteve a ermida de Santa Bárbara, encontrou, sobressaltada e cheia de medo, o cadáver de um homem, com que ficaram pasmados os outros que ela chamou aos gritos.

Alvoraçados, recolheram aos navios e no outro dia, voltaram armados e assim andaram até deslindarem o enigma.

Parece que o companheiro do amante da bela Dulcineia acaba por se apaixonar por ela, ou ela e ele um pelo outro, e esta nova paixão deu lugar ao homicídio.

Enquanto os homens iam trabalhar e montear, as suas cabanas eram assaltadas e até queimadas, roubando-se-lhes roupa e comida. Por isso, armaram uma esparrela. Fingiram que se embarcavam todos, num batel ou nos próprios navios, deixando espias dentro das cafuas. O jovem apaixonado, foi apanhado.

A mulher, com vergonha, fugiu para as bandas do Nordeste onde depois a encontraram muito “disforma, negra e descorada “, junto duma ribeira que ainda se chama a “Ribeira da Mulher” e, porque estava enfadada e farta do amante e dos trabalhos que a sobrevivência dos três naquela terra erma e destituída dos confortos da civilização implicava, contou tudo.

Gonçalo Vaz mandou então pôr o homem a tormentos para lhe arrancar a confissão, considerada a rainha das provas e o desgraçado confessou. O tormento podia ser por açoites e por dado por três vezes mas a confissão assim arrancada tinha que ser ratificada pelo réu, longe dos instrumentos do tormento, sob pena de ser nula. Da ordem que mandava aplicar o tormento podia apelar-se suspensivamente (Ord. Livº.V, tit. 88)

E é neste ponto que o homem, assassino por amor, é julgado sumariamente, condenado à morte e executado por enforcamento numa das muitas árvores ali existentes, num alto duma baixa rocha, junto da ribeira que fica do lugar para a parte poente.

O homem alegou defesa !!! - diz Frutuoso. E é neste momento que começam as tropelias à lei do processo penal: nem auto ou devassa ou corpo do delito, nem inquirição das testemunhas, do réu e eventualmente da co-ré, sem o cerimonial costumeiro e ordenado, extremamente solene (com pregão obrigatório ao som dos tambores), do essencial da sentença. O chefe da expedição tudo ignorou e ditou e executou a pena de morte que apesar de abranger uma área muito vasta, desde a lesa majestade, passando pelo adultério até à sodomia, nunca podia ser aplicada do pé para a mão, sem respeito pelo direito de defesa, com inquirições escritas das testemunhas da acusação e da defesa, com libelo acusatório e principalmente com recurso obrigatório para o Rei, e, no caso, passando pelo Infante Donatário.

Apercebendo-se do crime que acabaram por cometer, e imediatamente após o enforcamento, elegem entre si, juiz, escrivão e alcaide. Como o arguido lhes havia queimado as primeiras casas cobertas de palha, ramo ou feno, isto enfureceu os “ julgadores “.

E aqui nova lei foi violada. Por um lado, foram juizes em causa própria. Só por isso, e se lhe tivessem deferido o pedido direito de defesa, conseguiria a anulação do julgamento. Acresce que a pena de morte era rodeada de cautelas tais que, a que era decretada pelo próprio Rei, só podia ser executada 20 dias depois de lida, para prevenir os casos em que o julgador por fúria ou outro impulso que perturbasse a serenidade, se precipitasse. Mas os julgadores povoacenses alegariam que tinham “suspeitas e receios”... É que ele tinha roubado a mulher a outro a quem matara, e“cesteiro que faz um cesto faz um cento “...

Aquele grupo de cidadãos, tementes a Deus e fidelíssimos vassalos do Rei, percebeu que tinha cometido grave desacato; ninguém no Portugal de quatrocentos podia fazer justiça por suas próprias mãos. Alguns anos depois, quando D.João II mandou julgar por traição, o seu cunhado D. Diogo, Duque de Viseu, e Senhor desta ilha, e o Supremo Tribunal ou Casa da Suplicação, o condenou à morte não havia no Reino pessoa de tão elevada categoria como a do arguido, irmão da Rainha para executar a sentença, foi o Rei que teve de o fazer, que aos juizes apenas coube segurá-lo para que não desacatasse o real algoz.

Foi, penso eu, Gonçalo Vaz o juiz, porque mais tarde lhe foi dado o cargo de Ouvidor do Rei, que exercia funções judiciais superiores, talvez numa forma de salvar as aparências, ratificando o processado...

Houve discussão entre os expedicionários porque acabaram por concluir “que tinham mal feito “.É que, “ o enforcaram logo sem mais forma nem figura de juízo “ (As Ordenações admitiam certos processos sem “ ordem, nem figura de juízo “, nos casos de esbulho violento de propriedade (tit.XXXVI, do livro 5º), a fim de apressar os processos). Porém, dizia então o decreto real: “ Bem sabedes como por mim é mandado, que em todos os feitos de morte, que aconteceram em vossos julgados, façam inquirições devassas, tanto que essas mortes fossem feitas, para se saber a verdade”. Ord. L. 5º, tit.. 34


Perceberam logo que podiam perder os ofícios, os bens e as cabeças, como o permitia o livro 2º, título 3º, das Ordenações Afonsinas.

Santa Maria não estava tão longe que o homem não pudesse ser enviado para as suas Justiças e lá instruído o processo, como devia ser, e enviado ao Desembargo do Paço ou à Casa da Suplicação, aí confirmariam as culpas e a pena máxima ... ou não!

Os próprios Mouriscos tinham gritado: “ Forcate, Forcate e depois tirate inquiricione”. Fora de questão estava o encobrimento, isto é, enterrar o homem e esquecer o caso.

Daí, embora às avessas, depois da morte do suspeito, o processo foi instaurado: “ fizeram autos de suas culpas “, tiraram “devassa “ em que todos testemunharam, com o próprio Juiz, o Ministério Público e o Escrivão a deporem como testemunhas! Os autos, jurados e assinados, seguiram viagem até Gonçalo Velho que não gostou. O Rei tinha sido desobedecido e ele, o Comendador, uma espécie de general da Ordem Militar de Cristo, desautorizado.

Foi enviado o processo ao Infante, pessoa de poucos sorrisos ou cortesias perante quem os vassalos sentiam pavor; acima dele, só existia o Rei. E os reis que ele conhecera foram o Pai, o Irmão e o pequeno sobrinho representado por D. Pedro, o Regente que lhe trouxera da Europa o mapa com as ilhas.

A casa do Infante, em S. Vicente, não tinha poder de arquivar o processo que foi mandado ao Regente, legalista, autoritário, e centralizador, que ordenou que os justiceiros da Povoação fossem apresados e levados a ferros a Lisboa. Pede-se então a intervenção pessoal do Infante que, ao saber da ordem de prisão dos poucos nobres encarregados de povoarem a nova ilha, alguns deles “privados” de Reis, preocupou-se, pois não lhe estava a ser fácil conseguir gente boa para as ilhas desertas e perdidas em Mar Oceano. O próprio Gonçalo Vaz Botelho era filho do Comendador - Mor de Cristo!


Por outro lado, a mulher de Gonçalo Vaz estava grávida do que viria a ser Nuno Gonçalves Botelho, o primeiro micaelense, argumento que não terá deixado de ser usado.

Se aquele grupo escolhido a dedo e conseguido a custo de promessas, aventuras e riquezas sem conta, fosse preso, toda a colonização dos Açores se teria gorado ou transformado.

As primeiras espigas de trigo não tinham dado certo, os vulcões faziam das suas, com cinzas, pedra pomes, e estrondos aterrorizadores. Sem processos de Justiça, todos se queriam vir embora. Meses e talvez anos de trabalho (que a Justiça naquele tempo era tão rápida como hoje) se iriam perder. O Infante com 48 anos, e sempre solteiro, montou a cavalo e zarpou para Lisboa “falar” com os outros irmãos que o apoiaram, pois que o enforcado tinha que ser condenado à morte pelos crimes que cometera e não fazia sentido prender-se gente importante só por questões processuais.

D. Pedro, convencido por tão pragmática argumentação, para mais ainda afectado pela prisão do irmão Fernando em Fez e no auge do seu poder, perdoou as penas e mandou arquivar o processo.

Deve-se ao acto de clemência soberana do príncipe em nome do seu real sobrinho, o Senhor Rei, o mui alto e poderoso D.Afonso V, o estarmos hoje nesta sala.

2.- Século e meio depois, os Açores vão passar por terrível convulsão.
Analisemos, para percebermos o que se passou, a figura do Corregedor Régio, que representa o Rei nos Açores, com um regimento desde 1340, e que foi inserto nas Ordenações Manuelinas ( no livro I, título 39), em vigor quando a história acontece.
A função obrigava-os a circular pelos julgados das suas comarcas, inspeccionando o trabalho dos juizes da terra ou de nomeação régia, os livros onde os processos eram registados, mandando prender os já condenados e indevidamente soltos, inquirindo crimes graves, inspeccionando tabeliães, dando cartas de segurança que permitiam os acusados manterem-se em liberdade enquanto preparavam a sua defesa sem que pudessem vingar-se deles os ofendidos ou as justiças importuná-los.
Julgavam em primeira instância os processos em que fossem interessados alcaides-mores, juizes, tabeliães, advogados, procuradores ou pessoas tão importantes que levassem os juizes ordinários a considerar-se impotentes ou eles mesmos fossem suspeitos. Recebiam os recursos e encaminhavam-nos para os tribunais superiores.
Tinham vastos poderes administrativos, recebendo queixas contra funcionários locais e fiscais, fiscalizavam a cultura das terras, a repartição da mão de obra, apreciavam as razões do despovoamento das terras, inspeccionavam os castelos e prisões, velavam pelo cumprimento dos forais, julgavam o trabalho dos vereadores, verificavam o funcionamento dos municípios, providenciando as respectivas eleições e vigiando as rendas dos concelhos.
Procedem ao castigo de bandos de peleja ou, sendo pessoas de qualidade, comunicam ao rei esse facto. Têm poder para corrigir os funcionários reais que agravem o povo ou queixar-se deles se não obedecerem à correcção. Procedem à resolução de conflitos entre concelhos, visitando os lugares do seu território, anualmente.
Podem ainda autorizar fintas para custear certas obras públicas urgentes.
Em suma, deve encaminhar directamente para o Rei tudo o que de ilegal se passe, aconselhando o Monarca na solução das questões.
Trata-se dum poderoso magistrado. Nos Açores, pois que o seu território atravessa o de várias capitanias e ilhas ele é, de facto, a maior autoridade régia.
Só assim se percebe que tenha arrastado quase toda a população da Terceira e algumas das ilhas de Baixo a apoiar D.António em 1580, no seu dramático conflito com Filipe II, quando o resto do reino já estava por este.
A chegada do lugar tenente de D.António à ilha de Jesus Cristo, transforma-o em segunda figura e, desgraçadamente, a precipitação de Manuel da Silva em mandar executar João de Bettencourt, o degolado da Madre de Deus, preso por aclamar o rei Castelhano, preparou a derrota, por afectar a essência do nosso viver tradicional e violar abertamente as Ordenações, pois só o Rei podia decretar a pena de morte. Aliás, D.António já havia violado essa regra, sagrada até ele e depois dele, ao conceder ao Feitor da Fazenda em S.Miguel esse poder e o de confiscar bens, nos Açores “com todo o poder e jurisdição que vos parecer”, na ânsia de arranjar dinheiro para a sua causa (Arquivo dos Açores,II, p.23).
É certo que se tratou dum período excepcional mas é precisamente por isso que o exercício da cidadania se torna delicado, difícil e problemático. O Corregedor Ciprião de Figueredo ficou na história como grande português mas a forma nobre como exerceu a cidadania não impediu a morte dum dos principais da Terceira, porventura seu amigo, nem o saque de Angra por três terríveis dias nem a ocupação da ilha por forças militares estrangeiras durante longos anos, sustentadas à custa da fome dos seus habitantes.
O Conde de Torres Vedras foi um estadista frustrado que exerceu a cidadania duma forma turbulenta e impensada, atropelando leis seculares e consensos moderados, ajudando a cavar a sua ruína e a do Corregedor Ciprião de Figueredo, o mais prestigiado e poderoso cidadão das ilhas.
Não é fácil hoje perceber o terramoto social que então aconteceu: os micaelenses apavorados com a bárbara execução de milhares de franceses em Vila Franca por ordem e sob o olhar de Santa Cruz; o terror do saque de Angra pela soldadesca castelhana e turca e é impossível saber como foi exercida a cidadania por uma sociedade vencida e humilhada quando ainda mal refeita de Alcácer-Quibir mas não é difícil adivinhar a onda de oportunismo que durante 60 anos campeou por cidades, vilas e aldeias, carregando de medo os que nunca perceberam a mudança dos tempos e das vontades.

3.- Saltemos agora mais quatro Séculos. Um ano e quarenta e dois dias após a Revolução de 25 de Abril de 1974, os açorianos ergueram-se em São Miguel, na Terceira e no Faial contra os marxistas que a pretexto de restaurar a democracia, mal disfarçavam o intento de implantar uma ditadura do proletariado, a coberto da via “original” para o socialismo.

Se nestas duas últimas ilhas, a manifestação foi tímida e de pouco impacto, em São Miguel constituiu o maior e mais viril movimento até hoje ocorrido nos Açores. Atravessando a cidade, milhares de pessoas com cartazes e slogans, proclamaram-se contra o governo comunista de Lisboa e o seu representante no então Distrito Autónomo de Ponta Delgada e, aproximando-se do Palácio da Conceição, sede do Governo Civil, exigiram a demissão de Borges Coutinho que acabou ali mesmo por abandonar o cargo, estimulado a isso pelo comandante militar, entretanto chegado com tropa armada.

Não se pode dizer que o movimento do “6 de Junho de 1975” tenha tido um organizador ou um responsável únicos. “Toda a gente” se compreendia, queria o mesmo, colaborou na sua feitura, e as acções surgiram espontâneas e fáceis.

Os militares, na sua maioria, eram favoráveis à manifestação, mas o general Magalhães, autoridade militar no Arquipélago, aproveita-se dela para dar um golpe de Estado, indiferente ao mal que causou e ao manifesto atropelo ao Programa do Movimento das Forças Armadas Portuguesas que a Lei 3/1974 de 14 de Maio alçara à dignidade constitucional e que restaurara a liberdade de reunião, de associação e “de expressão e pensamento sob qualquer forma”. Apoiou-se primeiramente nos marxistas que aqui, então, entre os militares, eram minoria, nos democratas da esquerda que identificaram ( mal ) a manifestação com a extrema direita e nalguns, poucos, para quem o serviço militar é apenas obediência a ordens e que alto preço pagaram por se terem recusado a pensar pela sua cabeça.

Na sociedade civil, encontrou eco no partido comunista, no MES, no MDP CDE. Aproveitou ainda o PS e os democratas da Primeira República que lançavam um olhar hostil aos manifestantes onde viram qualquer coisa parecida com os trauliteiros de D. Miguel.

Essa atitude haveria de afastá-los do poder nos Açores, para nosso mal, durante 20 anos!

Afora os indiferentes por feitio ou por medo da política ou da autoridade ( qualquer que ela seja ), toda a restante população (e parecia a maioria) estava a favor da manifestação, participava nela ou estava com ela.

Ou por motivos políticos, pois opunham-se ao comunismo activamente, ou consideravam o governo do Dr. António Borges Coutinho nocivo aos seus interesses económicos ( lavradores, madeireiros, etc ) ou porque pretendiam aproveitar o movimento descentralizador que reinava em Lisboa, com o avanço para as independências das províncias ultramarinas e conseguir uma autonomia avantajada ou mesmo a independência para os Açores.

Quem sentiu de imediato que se tratava de golpe de estado foi Borges Coutinho, adversário de sempre do Estado Novo e amigo íntimo do agora todo poderoso Melo Antunes. Magalhães depôs o governador sem que tivesse outro poder para além das G-3, e aquele retirou para a capital.

Proclamando-se Comandante Chefe das Forças Armadas nos Açores, ordenou então a prisão nocturna, cobarde e pombalina de trinta e cinco cidadãos que escolheu arbitrariamente entre listas de “suspeitos” eventualmente fornecidas pelas forças de esquerda, já que o PPD sempre negou tê-lo feito, e o CDS do Engenheiro Manuel Potes Cordovil se opôs corajosamente, antes, durante e depois daquela.

Mandou, de seguida, retirar os presos civis da Cadeia de Angra do Heroísmo e para lá mandou os 35, debaixo de forte escolta militar, 24 horas por dia mas, fortemente pressionado, pela França, Canadá e Estados Unidos e pela população indignada até ao ódio, foi-os libertando aos poucos, até que os últimos dali saíram em Julho.

O autodenominado comandante-chefe constituiu uma Junta Governativa (que alguns apelidaram de recreativa), juntou-lhe uns tantos colaboracionistas e tentou governar. Sem querer uniu os açorianos e abriu caminho para o actual estado de coisas que não sendo ainda o desejável, está longe dos tempos negros do divisionismo e centralismo imposto pela Revolução do 28 de Maio.

Na sombra, e até Novembro, os serviços secretos americanos aproximaram-se clinicamente dos manifestantes e, bem escondidos, alguns empresários e proprietários ricos que viam no comunismo um perigo potencial para as suas fortunas, eram-lhes timidamente favoráveis.

Os intelectuais dividiram-se. Uns calaram-se por prudência, pois, nada tinham a perder quer viesse o comunismo ou o capitalismo. Professores e funcionários públicos e pequenos comerciantes eram e assim continuariam. Outros apoiaram abertamente o novo movimento emancipalista, como o advogado Silva Fraga, o médico Sousa Pedro, o engenheiro Costa Matos, o arquitecto Gomes de Menezes e outros.

Os de formação esquerdista, hostilizaram abertamente. Conspiraram, atacaram e acabaram por defender-se quando os autonomistas/independentistas tomaram o poder na rua, se organizaram e conquistaram o favor popular. Outros apoiaram activa, corajosa e até temerariamente o movimento gerado pela manifestação e consolidado e estimulado pelas prisões.

O povo das vilas e cidades e a classe rural apoiaram claramente a manifestação e os seus frutos imediatos.

A Igreja dividiu-se: houve ardentes defensores radicais, houve os prudentes apoiantes, os neutros e os hostis.

A luta que se seguiu com bombas, agressões, destruição de sedes partidárias, expulsão de continentais e de esquerdistas fanáticos foi o resultado do imprudente e negligente exercício do poder por parte de Magalhães cuja acção só por milagre não conduziu a um banho de sangue de ambos os lados.

Foi desta amálgama que resultou a Autonomia que agora temos que só foi possível depois do 25 de Abril, embora indesejada pelos mentores da Revolução. O “6 de Junho” apressou a sua aceitação para despistar os independentistas que foram a sua mola real, pois só eles, como reconhecia Natália Correia, fizeram a diferença.

Seja como for, não é, nem de perto, coisa acabada. O bem estar colectivo é um estado que se procura permanentemente e os conceitos jurídicos longe de conduzirem os destinos dos povos são meros instrumentos criados por estes para pacificamente se alcançar aquele objectivo. O estudo atento e permanente da sociedade em que nos inserimos é que permite evitar as clivagens fracturantes e quiçá desnecessárias na evolução natural para a sociedade democrática, sem diferenças de oportunidades sem colonialismos subtis e o que tiver de acontecer nesse sentido acontecerá quer queiramos quer não porque, pode atrasar-se o inevitável, não pode é impedir-se que um povo civilizado procure e se encontre com o seu destino natural.
Ponta Delgada, 5 de Março de 2005
Carlos Melo Bento

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